terça-feira, 23 de abril de 2013

TEOLOGIA DO SÉCULO XX: Rudolf Bultmann


TEOLOGIA DO SÉCULO XX: Rudolf Bultmann

O teólogo alemão Rudolf Bultmann (1884 - 1976)


Estamos diante de uma heresia, tanto mais perigosa quanto suas conseqüências são aceitas por muitos que ficaram horrorizados se remontassem às causas teológicas e se apercebessem que se trata de adaptar o cristianismo ao “mundo marxista” esvaziando-o de sua substância.[1] É com esse lacônico informe publicado em 1969 na revista Hora Presente sobre A Nova Escola Teológica, que Pierre Debray comenta nos tons mais dramáticos o pensamento de Rudolf Bultmann e de sua escola, que então começava a ser descoberto no Brasil. Ao longo de sua carreira docente, e mesmo após ela, o exegeta de Marburgo sempre reclamou do sectarismo dos ataques, principalmente pelo fato de que muitos dos seus detratores jamais procuraram conhecer a sua obra, ou porque não a conheciam a fundo, ou simplesmente por não terem conhecimento do assunto. E de fato muita coisa que se fala de Bultmann evidencia mais a ignorância do assunto do que propriamente o zelo pelo esclarecimento da verdade.
Bultmann, que nasceu na pequena povoação alemã de Wiefestelde, perto de Oldenburgo, Baixa Saxônia, em 20 de agosto de 1884, e morreu em Marburgo em 30 de julho de 1976, provinha de uma família luterana de rígida tradição ministerial (o pai, pastor de orientação moderada e o avô, de formação pietista, que fora missionário em Serra Leoa, onde seu pai nascera). Estudou noGinnasium de Oldenburgo (onde foi colega de Karl Jaspers) em Tübingen, Marburgo (onde foi aluno de Wilhelm Hermann) e em Berlim (onde estudou com Harnack), tendo nessa segunda universidade obtido seu doutoramento, em 1910, com uma tese sobre o estilo de pregação do apóstolo Paulo e dois anos depois a habilitação para lecionar com um ensaio sobre a exegese de Teodoro de Mopsuéstia. De 1912 a 1916 atua em Marburgo como professor assistente seguindo nesse último ano para Breslau, então cidade alemã, como titular de Novo Testamento, e ali permanecendo até 1920 quando é transferido para Giessen. No ano seguinte, volta para Marburgo, desta vez para não sair mais, e onde irá produzir a quase totalidade de sua obra exegética.
Bultmann, portanto, ainda não estava em Marburgo quando tomou conhecimento do novo movimento teológico liderado por Barth e Gogarten, mas foi só depois que ali chegou, em 1922, que lhe escreveu uma resenha favorável. Entretanto, segundo uma carta inédita enviada por Bultmann a Erich Dinkler, seu colega de magistério de Marburgo e datada de outubro de 1921, o exegeta já se declarava rompido com a teologia liberal de sua época, embora, paradoxalmente, mantenha estreitas ligações com os seus mestres liberais ao longo de sua obra como Johannes Weiss, cujo conceito de escatologia ele incorpora em sua obra, e principalmente, Wilhelm Hermann (1846 – 1922), seu antigo professor em Marburgo, e que já lançara alguns temas recorrentes da neortodoxia como a impossibilidade de se assimilar a religião por meio de algum sistema filosófico ou ainda de que a religião não é um fundamento universalmente válido, mas apenas algo que só pode ser demonstrado na existência individual de cada pessoa. A dependência de Bultmann em relação à Hermann fica ainda mais evidente no artigo A Questão da Cristologia (1927)
[2], em que debate um livro do teólogo Emanuel Hirsch que indevidamente lhe fizera um comentário depreciativo. É por isso que a ruptura de Bultmann com a teologia liberal não é definitiva, porque ele não rompeu com a sua tentativa de reconstruir o itinerário da proclamação da comunidade cristã consignada nos evangelhos, especialmente os Sinóticos, a partir da própria reconstrução exegética das fontes. Mais evidente é a dependência de Martin Heidegger, que entre 1923 e 1928 lecionaria em Marburgo antes de retornar a Friburgo para assumir a docência de filosofia. Heidegger (1889 – 1976), que em 1927 publicaria Ser e Tempo, emprestou a Bultmann os elementos hermenêuticos para estabelecer uma compreensão sobre o sentido do ser no mundo, e desse modo, estabeleceu uma ponte que por mais de meio século o vincularia à filosofia existencialista. Bultmann também recebeu alguma influência de Kierkegaard, mas essa apenas no que diz respeito à sujeição do indivíduo pela fé. É desse modo, como discípulo de Heidegger que o exegeta construirá sua obra, sendo totalmente improcedente a catilinária lançada por Barth de que o pensamento do filósofo dinamarquês fora responsável por sua obra.
A pesquisa exegética de Bultmann em Marburgo se inicia com a História da Tradição Sinótica(1921. Revisada em 1931), onde Bultmann apresenta vários elementos oriundos do contexto vivo da comunidade cristã primitiva (Sitz in Leben). Parte desse material será aproveitado em seu ensaio sobre Jesus (1926), em que não apenas apresenta a mensagem cristã como oriunda do querigma, como ainda, de que o próprio Jesus não tinha em vista a fundação de nenhum ensinamento ou ética distintas do judaísmo, mas que apenas o reinterpreta (tese retomada no ensaio Cristo, o fim da lei, publicado durante a guerra, em 1940 e reproduzido em Crer e Compreender). Esse envolvimento completo com a pesquisa neotestamentária faz com que Bultmann, embora tenha participado da fundação da Igreja Confessante, como resposta ao avanço do cristianismo nazificado (1934), não tenha um envolvimento mais amplo e tampouco político como no caso de Bonhöeffer. Como diz Walter Altmann, Bultmann considerou ser a contribuição que lhe cabia dar a de empenhar-se no sentido de que o trabalho científico livre mantivesse seu lugar adequado em face das tendências reacionárias 
[3].
O ano de 1941 é o divisor de águas de sua carreira: a publicação do seu comentário ao evangelho de João e o manifesto dogmático Novo Testamento e Mitologia são lançados num contexto marcado pela guerra e pela manietação da igreja em face do domínio onipotente do nazi-fascismo. No caso do comentário ao quarto evangelho, Bultmann lança mão de duas propostas exegéticas: a de que o texto seria na verdade uma compilação redigida por um redator eclesiástico, que teria alterado a redação anterior de fundo gnóstico, bem como a escatologia presente por uma futura, e ainda, de que era possível encontrar influências gnósticas na comunidade cristã por meio dos escritos dos mandeus (seita gnóstico-cristã oriunda do Iraque, do século VIII), que seriam, teologicamente, oriundos do mesmo contexto vivencial da comunidade primitiva. Assim, é exclusivamente com base no conceito de lugar vivencial (sitz in leben) que o professor de Marburgo procurará reconstruir a estrutura do evangelho joanino, num empreendimento acadêmico ao mesmo tempo audacioso e temerário. Audacioso pelo amplo recurso dos instrumentos exegéticos de que dispunha para promover uma verdadeira reconstrução do texto segundo a premissa da idéia original de seu material. E temerária pelo fato de não ter atentado para o fato de que numa reconstrução desses moldes, necessariamente o texto original precisaria apresentar, no final das contas, alguma uniformidade e coerência, além do que, a dependência de fontes posteriores à data geralmente atribuída da redação do quarto evangelho representavam um peso para o futuro e um sério questionamento quanto aos seus métodos de exegese. No final, o resultado não poderia ser mais frustrante:

Rudolf Bultmann foi o que mais trabalhou com essa hipótese das fontes, escreve Gerhardt Hörster: ele tentou comprovar a existência de escritos de duas fontes no evangelho de João: a fonte dos sinais e a fonte dos discursos da revelação. Para comprovar a primeira, ele se baseou na enumeração dos sinais em 2.11 e 4.54. Concluiu daí que na fonte dos sinais e enumeração continuava, mas o evangelista não deu seqüência a ela no seu texto. (...). É verdade que após a reconstrução da fonte original feita por Bultmann, o pensamento do texto é retilíneo (ex. 6.27-59; 6.27-34s, 30-33, 47-51ª, 41-46). Mas a estrutura típica de João – e provavelmente a de Jesus também – foi quebrada por meio dessa reconstrução
[4]

O fracasso dessa experiência exegética foi ainda mais evidente pelo fato de que não se encontrou nenhum texto gnóstico do período dos evangelhos que corroborasse a tese de Bultmann de que os escritos dos mandeus seriam retroativos à época da comunidade primitiva, afirmação que não foi desmentida nem com a descoberta dos escritos gnósticos de Nag Hammadi no Egito (1945) e nem com os de Qmram, na Palestina (1947). Sua imensa Teologia do Novo Testamento (1948 – 1951), escrita já na fase final da sua docência em Marburgo, reflete ainda a pesquisa teológica que se fizera até então e que ainda influenciaria gerações de estudiosos de Ernst Käsemann até Phillip Vielhauer, sendo, portanto, um testemunho acabado de sua visão da crítica textual histórica e científica.
Mais importante para a História da Teologia foi o seu manifesto dogmático Novo Testamento e Mitologia apresentado numa reunião do sínodo da Igreja Confessante em Frankfurt, em abril de 1941, e depois reapresentado na Sociedade Teológica Evangélica em Alpirsbach, em junho desse ano. No manifesto, Bultmann afirma que o Novo Testamento foi escrito em linguagem miológica, incompatível com o homem moderno, sendo a tarefa hermenêutica em nossos dias reinterpretar essa linguagem mitológica, reaproximar a Bíblia do leitor moderno e resgatar a centralidade dessa mesma mensagem que exige incondicionalmente a fé em Jesus. Daí porque Bultmann sempre afirmava que seu ensino na verdade nada propunha de novo, mas do contrário, mantinha a centralidade da mensagem cristã e da justificação somente pela fé, tal como exposto por Lutero. O debate sobre a demitização ou demitologização foi um dos mais dramáticos e apaixonados da História da Teologia do século XX. A princípio restrito à língua alemã, estendeu-se depois da guerra aos países de língua inglesa ganhando daí o mundo todo. Gogarten, e os teólogos estadunidenses Schubert Ogden e John Macquarrie e (em certo aspecto) Paul Tillich acorreram em defesa de Bultmann; Karl Barth, Oscar Cullmann (e com eles os teólogos católicos) e o filósofo Karl Jaspers atacaram a Demitologização, ao passo que Bonhöeffer manteve uma posição de eqüidistância e equilíbrio entre as partes. Para Macquarrie, Bultmann não eliminou o mito, mas apenas o reinterpretou 
[5], enquanto para Cullmann não se podia fazer demitologização com os fatos da história – a os fatos contidos no NT são, em sua essência, também fatos históricos. Barth acusou Bultmann de submeter os fatos do NT ao juízo de uma ciência neotestamentária de frágil sustentabilidade, ao passo que Paul Tillich, muito preocupado com a história, defendeu a necessidade de compreender-se o significado histórico dos escritos bíblicos. Aí está a sua importância. Ele [Bultmann] nos mostrou que essa questão era importante e que a nossa relação com a Bíblia não pode se expressar apenas por meio de frases paradoxais e sobrenaturais, mesmo possuídas pelo poder profético de Karl Barth [6]. Finalmente, Karl Jaspers rejeita o conceito muito difuso de mito de Bultmann por estar baseado na discutível e por isso mesmo rejeitada conceituação de mito do iluminismo. Bultmann procurou sempre responder às críticas sendo, talvez, a mais consistente dessas respostas Jesus Cristo e Mitologia, obra que surgiu de uma série de conferências que realizara nos Estados Unidos na época de sua aposentadoria em 1951. Contudo, o ambiente teológico a essa altura já estava saturado pelo debate: em 1952 o Sínodo de Flensburg da Igreja Luterana torna a condenar a demitização. No ano seguinte, a conferência de Käsemann em Göttingen reacendendo o debate sobre o Jesus Histórico sepulta de uma vez o debate sobre a demitologização com a divisão dos bultmannianos.
O sistema de pensamento bultmanniano não foi uma obra acabada, mas resultado de uma longa maturação que já aparece no seu pequeno estudo dedicado à Jesus (1926), em que procurou fazer uma reconstituição do pensamento e da mensagem de Cristo – especialmente no que diz respeito à sua consciência messiânica – tomando por base os evangelhos sinóticos: é verdade que não se tem nenhuma garantia de que todas as palavras dos evangelhos em que Jesus cita passagens da Escritura tenham sido ditas por ele; algumas certamente só lhe foram postas na boca pela comunidade
[7] Nos anos 30 no artigo A Cristologia do Novo Testamento (1933), ele já lança alguns conceitos que mais tarde reaparecerão em Novo Testamento e Mitologia (1941). Com efeito, segundo o exegeta:

A pesquisa constatou uma evolução da cristologia no cristianismo primitivo, cujos vestígios são claros no Novo Testamento; essa evolução resultou no seguinte: essa pessoa Jesus que se considerava ou ao menos era considerado rei do tempo final, eleito por Deus, acabou se tornando um ente divino celestial, ao qual se atribuía preexistência e que na qualidade de potência cósmica já participara da criação do mundo, que se tornou pessoa e morreu e ressuscitou, subiu ao céu e lá está assentado num trono como ente divino ao lado de Deus. (...) a presteza dessa evolução se deve ao fato de terem sido projetadas sobre Jesus noções mitológicas há muito existentes no Judaísmo e no paganismo a respeito de uma entidade divina redentora de seres humanos. (...) essas noções não eram novas, mas provinham de antigas mitologias, de antigas esperanças e antigos sonhos. Novo era apenas o fato de tudo isso ter sido dito a respeito dessa pessoa histórica e específica, Jesus de Nazaré.
[8]

Em Novo Testamento e Mitologia as teses são apresentadas com poucas variações, evidenciando maturação do pensamento. Bultmann afirma que temas como a preexistência do Cristo, a ressurreição e o juízo final

São na verdade expressões mitológicas e a origem destes vários temas pode ser facilmente traçada na mitologia do apocalipsismo judaico daquela época e nos mitos de redenção do gnosticismo (...) pode então a pregação cristã esperar que o homem moderno aceite esta perspectiva mítica do mundo como verdadeira? Fazer isto seria insensato e impossível. Seria insensato porque não há nada especificamente cristão na perspectiva mítica do mundo como tal. Ele é simplesmente a cosmologia de uma época pré-científica. Seria impossível porque nenhum homem pode adotar uma perspectiva do mundo à vontade – ela lhe é determinada pelo seu lugar na história. (...). É impossível usar a luz elétrica e o telégrafo sem fio e servirmo-nos das descobertas médicas e cirúrgicas modernas e ao mesmo tempo crer no mundo dos demônios e espíritos apresentado pelo NT.
[9]

Para Bultmann, o entendimento da fé em Jesus não passa de forma alguma pelo reconhecimento da filiação divina de Cristo, sua preexistência, sua natureza, etc, mas sim a pura entrega à graça de Deus como reconhecimento da dependência humana a fim de, somente por ela, se obter a plena redenção (Graça e Liberdade, 1948).
[10] É por essa razão que para Bultmann a mensagem de Jesus com um ser preexistente jamais poderia se firmar por ser, ainda segundo ele, o produto de uma concepção mítica de mundo que fora superada na própria história. E sendo o pensamento do mundo moderno muito mais próximo do entendimento assimilado pelo mundo grego antigo do que do que da concepção bíblica de homem e de humanidade, torna-se necessário, por conseguinte, reinterpretar esse mesmo entendimento bíblico do mundo à luz do espírito muito mais moderno do do pensamento grego, o que para Bultmann configurava a suprema missão da Demitização ou Demitologização[11]. Para Bultmann, o grande desafio da demitologização era separar a pregação de Jesus daquela que foi recebida e continuada pela comunidade primitiva na sua forma mitológica, especialmente no que diz respeito à escatologia.[12] É por isso que para o exegeta, é imperativo separar a mensagem do Jesus da História da proclamação que a comunidade cristã faz a seu respeito e que ele chama de querigma. Fé cristã (...) existe só a partir do momento em que existe um querigma cristão, isto é, um querigma que proclama a Jesus Cristo como ato salvífico escatológico de Deus, ou seja, Jesus Cristo, o crucificado e ressurrecto. (...) portanto, é só com o querigma da comunidade primitiva é que tem início da reflexão teológica.[13] Daí a conclusão lógica de Bultmann que sendo o querigma o testemunho sobre o Cristo, este é um testemunho que está ligado às bases e a herança teológica da comunidade cristã. Um testemunho que pertence à comunidade e que deve ser pregado a partir da comunidade. Logo todo o cristão é um mensageiro e sua missão é proclamar o Cristo inserido nesse querigma e fazer da salvação por meio do testemunho de Cristo uma autêntica salvação pela Palavra[14]. Sob esse aspecto, (a missão da proclamação de Cristo pela comunidade) Bultmann é até bastante ortodoxo.
Como se aplica a demitização? A proposta de Bultmann demarcada no seu manifesto hermenêutico Novo Testamento e Mitologia (1941) é surpreendentemente mais conservadora do que se pensa. Para Bultmann, simplesmente não há como se aplicar totalmente a demitização em toda a sua extensão, dentro do Novo Testamento.
Esta crítica drástica da mitologia do NT significa a completa eliminação do Kerygma?
Qualquer que seja a verdade, não podemos salvar o kerygma selecionando algumas de suas características e subtraindo outras, reduzindo assim a quantidade de mitologia existente nêle. Por exemplo, é impossível dispensar o ensino de Paulo a respeito do recebimento indigno da Comunhão ou a respeito do Batismo pelos mortos, e, contudo, apegarmo-nos à crença de que aqueles elementos físicos têm efeito espiritual. Se aceitarmos uma idéia, precisaremos aceitar tudo que o NT tem a dizer a respeito do Batismo e da Comunhão, e é justamente isto que não podemos aceitar.

Naturalmente pode replicar-se dizendo que algumas características da mitologia do NT recebem maior proeminência que outras: não são todas que aparecem com a mesma regularidade nos vários livros. Por exemplo, as lendas (legends) do Nascimento Virginal e da Ascensão aparecem somente uma vez; Paulo e João parecem ignorá-las totalmente. Mas mesmo se a considerarmos acréscimos posteriores, isto não afeta o caráter mítico de evento da redenção como um todo. E se começarmos a subtrair do Kerygma, onde devemos traçar a linha demarcatória ? A perspectiva mítica do mundo deve ser aceita ou rejeitada em sua inteireza.
[15]

Assim, devido a dificuldade de estabelecer uma linha demarcatória entre mito e proclamação, onde se possa realizar a operação da demitização, Bultmann entende que o mito não pode ser eliminado do querigma. Apesar disso, o exegeta procurou aplicar o método em vários exercícios hermenêuticos especialmente em textos de Paulo e João que, como ele diz, seriam os mais infensos à mitologia: em I João 2.18 e 4.3 João fala do surgimento dos falsos mestres e entende esse momento como sendo o da irrupção do próprio anticristo (agora muitos anticristos têm surgido ARA)
[16]. Em outro exercício, (II Tessalonicenses 2.7-12), especialmente os vv. 7 (com efeito, o ministério da iniqüidade já opera ARA) e 9 (Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios da mentira... ARA), Bultmann vê o surgimento do anticristo descrito por Paulo como um fenômeno descrito em categorias inteiramente mitológicas, ao passo que João apresenta esse anticristo como sendo os falsos mestres, fazendo assim com que a Mitologia adentre numa esfera inteiramente histórica. É por essa e outras razões que Bultmann tinha uma extrema reverência pelo quarto evangelho, ao ponto de tornar esse livro a parte mais importante de seu sistema teológico. Esse repentino conservadorismo da parte de alguém que várias vezes foi acusado de pretender destruir a Escritura lhe rendeu não menos pesadas críticas, só que vindas do outro extremo, dos teólogos ou filósofos radicais, comprometidos com a demitização – e nesse caso também adesquerigmatização, segundo Karl Jaspers – que entenderam, e com certa razão, que Bultmann não concluíra, como se esperava que concluísse, a sua proposta hermenêutica neotestamentária. Note-se também (e nesse aspecto a crítica de Jaspers é ainda mais importante) que Bultmann, por não ter um conceito claro de mito, associa-o intrínsecamente com a idéia de lenda (legends), utilizando assim a mesma intepretação concebida pelo iluminismo do século XVIII, o que para o filósofo era um retrocesso, diante do mundo muito mais complexo e moldado por outros valores como era o mundo do século XX.
Dietrich Bonhöeffer foi certamente um dos primeiros a analisar o pensamento bultmanniano ainda na primeira fase da controvérsia sobre a demitização, quando os debates ainda se davam no âmbito da escola alemã. Conhecia Bultmann desde os primórdios da Igreja Confessante quando o exegeta se afiliara entre os seus membros, embora sem chegar a se envolver em questões políticas por acreditar que sua função teológica era aprofundar o campo de pesquisa sobre a exegese do Novo Testamento. Admirava sua sinceridade intelectual em expor as idéias sem fazer concessões e quando soube da tentativa da Convenção Geral dos Pastores da Igreja Confessante de excomungá-lo na conferência de Alpirsbach, em março de 1942, depois da apresentação de seu manifesto demitologizante, posicionou-se com veemência contra manobra
[17]. Para Bonhöeffer, que acompanhou da cadeia a controvérsia sobre a demitização, em decorrência de sua militância antinazista, Bultmann não fora longe demais porque propusera a Demitologização, mas sim porque convergira a sua reflexão para um caminho inteiramente errado porque não propusera uma ampliação do debate em torno do sentido de religiosidade no mundo moderno, mas tão somente fez uma reflexão exegética sobre o significado do dogma e da fé apresentada pela comunidade cristã nos primórdios de sua história.

Problemáticos não são apenas os conceitos “mitológicos” como milagre, ascensão, etc. (que em princípio não podem ser separados dos conceitos de Deus, fé, etc.!), mas os próprios conceitos “religiosos”. Não se pode separar Deus e milagre (como quer Bultmann), mas precisamos poder interpretar e proclamar a ambos de forma “não religiosa”. No fundo, o enfoque de Bultmann não deixa de ser liberal (isto é, redutor do Evangelho) ao passo que eu quero refletir teologicamente. O que significa então “interpretar na perspectiva religiosa?” Na minha opinião, significa falar por um lado de forma metafísica e, por outro, de forma individualista. Ambas as formas não atinam nem com a mensagem bíblica nem com o ser humano atual. A pergunta individualista pela salvação pessoal da alma não desapareceu quase completamente de nossa visão? Não temos realmente a impressão de que existem coisas mais importantes do que essa pergunta ( talvez não mais do que esse assunto mas sim mais do que essa pergunta!)? Sei que dizer isso parece bastante monstruoso. Mas no fundo, não seria até antibíblico? A questão da salvação da alma ocorre em algum lugar do Antigo Testamento? O centro de tudo não são a justiça e o reino de Deus na terra? E também em Romanos 3.24 ss o alvo do raciocínio não seria também a idéia de que Deus é justo, e não uma doutrina individualista da salvação? O que está em pauta não é o além, mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e renovado. O que está além deste mundo quer estar aí para este mundo no evangelho; não digo isso no sentido antropocêntrico da teologia liberal, mística, pietista e ética, mas no sentido bíblico da criação e da encarnação, da crucificação e ressurreição de Jesus Cristo. (Carta a Eberhardt Bethge, 05 de maio de 1944).
[18]

Para Bonhöeffer, Bultmann ao tentar separar conceitos como milagre, ascensão e preexistência de Cristo, estava na verdade não despindo o NT do seu significado mítico, mas tão somente separando conceitos que não podiam ser dissociados por representarem simbologicamente a fé cristã. Nos anos seguintes Paul Tillich retomaria essa tese em sua Teologia Sistemática, o que em certo sentido validou o posicionamento anterior do autor do Discipulado:

A verdade de um símbolo religioso não tem anda a ver com a verdade das afirmações empíricas implicadas nele, sejam físicas, psicológicas ou históricas. Um símbolo religioso possui alguma verdade se expressa adequadamente a correlação de revelação em que se encontra uma pessoa. Um símbolo religioso é verdadeiro se expressa adequadamente a correlação de uma pessoa com a revelação final. Um símbolo religioso só pode morrer se morre a correlação da qual ele é uma expressão adequada. (...). Um símbolo tem verdade: ele é adequado à revelação que expressa. Um símbolo é verdadeiro: ele é a expressão de uma revelação verdadeira
[19].

Paul Tillich desenvolveu uma reflexão teológica mais próxima daquilo que queria Bonhöeffer do que Bultmann: a teologia como tal não tem o dever nem o poder de confirmar ou negar símbolos religiosos. Sua tarefa consiste em interpretá-los de acordo com os princípios e métodos teológicos. No processo de interpretação, contudo, podem acontecer duas coisas: a teologia pode descobrir contradições entre os símbolos dentro do círculo teológico e a teologia pode falar não como teologia, mas também como religião. No primeiro caso, a teologia pode denunciar os perigos religiosos e os erros teológicos que derivam do uso de certos símbolos. No segundo caso, a teologia pode se tornar profecia. Neste papel, pode contribuir para uma mudança na situação revelatória.
[20] Quanto à questão de impraticabilidade de se separar o mito do seu significado, Bonhöeffer, que aqui me parece seguir a interpretação de mito de Schelling, mostrou as limitações do conceito de mito de Bultmann ao evidenciar que este não possui uma idéia clara do que seja mito, e como, por conseguinte, se fazer a separação da idéia mítica do seu significado real e dar a devida dimensão da mensagem de fé inserida no Novo Testamento. Sem essa definição seria impossível falar em Demitologização ou levar a cabo tal proposta.
Anos mais tarde, Oscar Culmann retomaria esse caminho, mas por outros paralelos ao afirmar que não se pode fazer demitização da História.
[21] E nos anos 60, Paul Tillich, então professor nos Estados Unidos, e que foi muito favorável a Bultmann nos primeiros anos de discussão sobre a demitologização, também seria forçado a reconhecer essa evidência: “ele (Bultmannnão conhece o significado do mito. Tampouco sabe que a linguagem religiosa é e sempre deverá ser mitológica. Até mesmo quando afirma a ação de Deus em Jesus, confrontando-nos com a possibilidade de decidirmos a favor ou contra a existência autêntica, ainda assim emprega linguagem simbológica e mitológica[22] Mais recentemente, Ronald Hepburn reafirmou a mesma coisa: Bultmann não oferece definição satisfatória nem se compromete com a definição que oferece[23].
Desse modo, não obstante as limitações decorrentes da prisão e as restrições naturais decorrentes da guerra, Bonhöeffer antecipou várias reflexões em torno da questão da Demitologização proposta por Bultmann e que seriam retomadas pela teologia posterior quando o tema ultrapassou o meio universitário alemão depois de 1945. Além disso, mesmo entre aqueles que receberam com simpatia a teologia bultmanniana, fica evidente também entre eles que o exegeta de Marburgo não possui um conceito de mito consistente. E até mesmo o próprio Bultmann reconhecia isso quando afirmava que minha definição de mito presta-se a mal-entendidos
[24].
O filósofo Karl Jaspers (1883 – 1969), que foi definido por Erich Dinkler como um protestante liberal extremo, que preocupado com Jesus como um tipo de humanidade falha, usa-o para apoiar a sua fé filosófica
[25], foi quem mais perto chegou do verdadeiro entendimento de Bultmann sobre a demitologização. Numa série de cartas sobe demitologização iniciada após uma congresso teológico realizado na Basiléia em 1953, Jaspers fez sérias objeções à demitização que resultaram numa súbita interrupção da mesma por parte do exegeta. Para ficarmos apenas no que concerne à teologia, dois problemas apresentados por Jaspers nos parecem significativos: o primeiro, do uso indiscriminado que Bultmann faz da filosofia existencialista de Heidegger, ao ponto de este ser apresentado em termos objetivos como doutrina, levando-o a seguir como qualquer sistema tradicional[26]. Além disso, Jaspers critica o uso seletivo que Bultmann faz da Bíblia. O Antigo Testamento foi rejeitado, os sinóticos são vistos com desconfiança, enquanto Paulo e João são constantemente citados. Para Jaspers, a preocupação de Bultmann com o uso de textos que tratem especificamente da justificação pela fé (e por isso abolindo o AT onde se trata do seu inverso, isto é, da autojustificação pela lei), mostra que até mesmo Bultmann não pretende levar o projeto de demitologização ao seu lógico desfecho que seria a desquerigmatização. Dentro do projeto da demitologização, o querigma não encontra lugar e surge artificialmente, como limite imposto por Bultmann a fim de preservar o elemento distintivo do cristianismo[27]. Para Jaspers, Bultmann acabou enveredando para a mais rígida ortodoxia ao procurar manter o querigma por meio de certo iluminismo ilegítimo e de certa filosofia científica que não é científica – no final das contas, equivale a assevera-se de dogmas absurdos e se agarrar a eles a qualquer custo, com a determinação que chega à violência. Como resultado disso, somos novamente confrontados com defeitos característicos desse tipo de empreendimento: incapacidade para satisfazer o descrente e levantamento de dúvidas no crente.[28].


Edson Douglas de Oliveira

Nenhum comentário:

Postar um comentário